Desafios e impactos sociais na atuação de desenvolvimento e empregabilidade de egressos do sistema carcerário
Contribuição: Leedyan Costa Oliveira Ortiz
Tatiane Lopes de Souza Santos
Resumo
O presente artigo tem por objetivo descrever e apresentar os resultados da metodologia de trabalho do Instituto Recomeçar da rede Gerando Falcões, que atua com egressos do sistema carcerário, desde 2015, com a intenção de empoderar, qualificar e recolocar esse público no mercado de trabalho.
Para isso, foi utilizado o método de estudo de caso, em que foram analisados os resultados do programa nos anos de 2018 a 2020, período em que o projeto passou a contar com metodologia própria. Como suporte nessa construção, tem-se os conceitos de Paulo Freire (1992) e Lev Vygotsky (1896 -1934) que apontam o contexto social como imprescindível para a aprendizagem e desenvolvimento humano.
De resultado, tem-se que o Instituto Recomeçar nesse período cadastrou 1003 egressos, qualificou em seu desenvolvimento pessoal 304 pessoas e conseguiu gerar renda para 105 até setembro de 2020. Sobre o perfil médio dos atendidos pelo programa, tem-se que são homens, não brancos e com ensino fundamental incompleto apontando assim, a relação entre a criminalidade e a desigualdade social.
Outros dado relevante é de uma amostra de 114 pessoas que passaram pelo programa em 2018 e foram acompanhadas a partir de uma parceria com o CACEC (Coordenadoria Técnica de Apoio à coordenadoria criminal e de Execuções Criminais do Tribunal de Justiça de São Paulo – TJSP), apenas 3% reincidiram ao cárcere.
Ao final é possível verificar que embora seja um campo novo, pouco explorado e desafiador, o investimento social por meio de oportunidades de emprego para o público egressos traz inúmeros benefícios sociais.
Introdução
O Instituto Recomeçar é uma ONG da rede Gerando Falcões que nasceu na instituição em forma de projeto liderado e idealizado por Leonardo Precioso, egresso do sistema prisional que após ter recebido uma oportunidade para atuar na Gerando Falcões como monitor esportivo, quis promover para outros egressos o mesmo suporte que teve.
De 2015 à 2017, o projeto não possuía aporte financeiro e nem equipe técnica própria. Todos os atendimentos que aconteciam eram de forma voluntária por psicólogas e assistentes sociais da Gerando Falcões.
Isso mudou em 2018, já que o projeto conseguiu investimento do Instituto Ação Pela paz, uma organização idealizada por Jayme Garfinkel, ex- presidente de conselho da Porto Seguro, com a finalidade de apoiar projetos que proporcionem a recuperação de detentos e egressos do sistema prisional.
Com isso, foi possível montar a primeira equipe do programa formada por uma assistente social, psicóloga e assistente administrativo com a missão de criar uma metodologia de trabalho eficaz e sustentável.
Durante esse período, a Gerando Falcões também foi crescendo, tornando-se uma rede de ONG’s e acelerando projetos sociais em todo o país. Em 2020 o projeto recomeçar tornou-se também uma dessas aceleradas e passou a ter sede própria em POÁ, contanto com esse investimento e também do antigo
parceiro, Instituto Ação Pela paz.
Durante esse período, uma das maiores dificuldades encontradas em atuar no empoderamento, desenvolvimento e recolocação desse público está na de encontrar suportes sociais, seja por empresário que cedam vagas de emprego ou aceitação desse trabalho por parte da sociedade.
Todo esse medo e receio da sociedade civil não ocorre sem contexto. Desde muito cedo, seja por meio de noticiários, programas infantis e jornais, aprendemos o que é o certo e errado. Consequentemente, aprendemos que as pessoas que quebram essas regras, essas leis, são pessoas perversas e que por isso merecem uma punição, um castigo.
Não somos levamos a tentar compreender, por exemplo, quais razões levaram essas pessoas cometerem tal ato e nem menos questionar se todos que cometem crimes recebem o mesmo tipo de punição.
O trecho abaixo retirado da tese de Luis Carlos Rocha (1994), retrata um pouco sobre esse imaginário social e o quanto que, na prática, ele se mostra equivocado.
“Quando vemos uma prisão com suas muralhas altas vigiadas por guardas armados, quando avistamos as celas com suas janelas gradeadas a ferro, onde às vezes aparecem as mãos do prisioneiro, é quase impossível deixar de pensar que alguma coisa de absolutamente terrível deve estar guardada por meios tão drásticos.
Talvez por isso muitos imaginem que as prisões estão repletas de assassinos perversos e de estupradores mortais. No entanto, mesmo nas prisões brasileiras, os culpados de homicídio são 10 ou no máximo 20 por cento.
Os de estupro não são mais que dois em cada cem. Não que isso seja insignificante. Mas, convenhamos, é muito menos do que somos levados a imaginar: 78% dos encarcerados não estão lá por práticas horrorosas
sistemáticas…” (ROCHA, 1994, p.55) Michael Foucault (1984), a partir de suas investigações com os dispositivos, chegou à conclusão de que todos os saberes e, consequentemente, todas as relações sãs perpassadas por jogos de poder e que esses não são apenas repressivos, mas também funcionam como modos de subjetivação, uma vez que criam novas identidades a fim de manter a ordem social estabelecida.
Diante disso, faz-se necessário cada vez mais buscar compreender o que de fato vincula-se por trás dos discursos proferidos no cotidiano e que constituem as nossas concepções de senso comum.
Desse modo, buscando como essa relação crime e lei deu-se durante os anos, tem-se que as duas sempre existiram na história de humanidade, em que a lei atua como uma norma para a manutenção da vida social.
O não cumprimento dessas leis sempre estiveram relacionadas a algum tipo de punição física. Na antiguidade, por exemplo, existiam as prisões custódias em que ocorria o aprisionamento daqueles que aguardavam a aplicação da pena ou por julgamento. Sobre essas penas, entre elas estavam: morte, mutilações e trabalhos forçados.
Já na idade média, surgiram as prisões do Estado, em que as pessoas ficavam presas até a condenação ou até receberem o perdão do rei. Até então, as prisões serviam para isolar e punir os infratores. No entanto, por influência do cristianismo, a igreja acrescentou fins reformadores a pena, em que Santo Agostinho afirmava que o castigo não deveria destruir o culpado, mas melhorálo, através do arrependimento, da meditação e da aceitação da própria culpa.
Hoje, na teoria, a pena e a reclusão servem justamente para esse propósito, de aceitação do erro por parte do infrator e o cárcere como local que irá desenvolvelo e prepara-lo para um retorno social, em que o crime não seja mais uma opção´.
Na prática, isso não acontece, já que cada vez mais as cadeias encontram-se em estado de superlotação e com dificuldades em garantir os direitos básicos dos internos. De acordo com o pensamento Foucualtiano, no atual sistema carcerário o castigo não é mais no corpo, mas sim na alma. Na identidade desses sujeitos.
Nesse contexto, o desenvolvimento e preparo para reintegrar essas pessoas a sociedade torna-se quase impossível.
Sobre o público carcerário, faz-se necessário compreender quem são essas pessoas. Se existe uma predominância de cor, escolaridade e classe social ou se é uma distribuição fiel com o perfil social do brasileiro.
Analisando os dados disponibilizados pelo Infopen ( sistema de informações estatísticas do sistema penitenciário brasileiro) em 2014,tem-se que 61,7% do público encarcerado eram pessoas pretas ou pardas e o restante, 37,22% eram brancos.
Em comparação de representatividade no mesmo ano em cenário nacional, os brancos representavam 45, 48% da população brasileira enquanto pretos e pardos são 53,63%. Além disso, tem-se a informação disponibilizada pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen) no mesmo ano de que 75% da população carcerária possuíam o grau escolar até o ensino fundamental completo.
Com esses dados, fica claro a relação entre a criminalidade e as desigualdades sociais, em que os que foram privados de direitos desde muito cedo na vida, como saúde, educação e moradia, por exemplo, têm mais chances de envolverem-se no crime por falta de oportunidades.
Essa realidade não é contemporânea, pelo contrário, analisando na história os perfis das pessoas que estiveram mais envolvidas com a criminalidade, tem-se uma ligação direta com as que estavam em vulnerabilidade social.
Na França, por exemplo, entre os séculos XVI e XVII, as pessoas mais pobres sem terem muito recursos, recorriam a esmolas, roubos e assassinatos para sobreviverem.
Como punição, o parlamento os obrigava a trabalhar nos encanamentos de esgotos acorrentados para depois condená-los as galés que eram prisões flutuantes, em que os presos eram acorrentados e obrigados a remarem.
Dentro da rede Gerando Falcões, o trabalho realizado com crianças e adolescentes em vulnerabilidade social é tido uma prevenção para que eles tenham oportunidades, iguais a muitos, de trilharem caminhos dentro da legalidade. Já o Instituto Recomeçar, embora pareça que atue com o público totalmente diferente, na verdade, atua com o mesmo: pessoas privadas de direitos sociais.
A diferença é que esses egressos que antes já foram crianças e adolescentes dotados de sonhos e potenciais, não receberam o suporte social e oportunidades de desenvolvimento e com isso o crime, presente na porta de casa para aqueles que moram na periferia, surgiu como uma saída acessível.
Um dos maiores objetivos desse artigo é mostrar não só os efeitos positivos e a eficácia do investimento social nesse público, mas também mostrar quem são essas pessoas. Ilustrar a relação entre a criminalidade e a desigualdade social para que seja possível a compreensão de que a maioria do sistema carcerário brasileiros não é constituída de pessoas perversas e isentas de humanidade, pelo contrário, é feita de pessoas que foram privadas , desde muito cedo, a direitos essenciais a vida.
Esse lugar comum tido de que a solução para criminalidade social é um encarceramento punitivo, mostra-se falho, já que os indicies de reincidência criminal são altos. Devido a poucos estudos e medições nessa área, não existe uma precisão exata desse valor.
Tem-se muito disseminado um valor de 70%, no entanto, de acordo com o relatório de pesquisa sobre reincidência criminal do ipea (instituto de pesquisa Economica Aplicada) realizado em 2015, esse valor não é tão preciso quanto achava-se. A citação a seguir apresenta a argumentação sobre essa situação.
“O relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do sistema carcerário, por exemplo, divulgou em 2008 que a taxa de reincidência dos detentos em relação ao crime chegava a 70% ou 80% conforme a Unidade da Federação (UF).
Entretanto, a CPI não produziu pesquisa que pudesse avaliar a veracidade deste número e baseou boa parte de suas conclusões nos dados informados pelos presídios. Como conclusão, o relatório afirmou que “hoje sabemos que a prisão não previne a reincidência e que devemos caminhar para alternativas que permitam ao autor de um delito assumir responsabilidades e fazer a devida reparação do dano eventualmente causado” (Brasil, 2008b)”.
O trecho acima mostra que mesmo sem uma exatidão nesse valor, tem-se a constatação de que o atual modelo não funciona para a ressocialização.
Sobre os custos desse modo de funcionamento, de acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em média um encarcerado custa R$ 2400,00 para o Estado. A partir dessa informação e dos resultados do programa, será medido ao longo desse artigo o que, economicamente, vale mais pena para a sociedade:
Prender ou reintegrar?
Outro grande desafio do Instituto Recomeçar, foi criar uma metodologia de desenvolvimento que atendesse as necessidades do público não só em conteúdo, mas identificar o melhor método de ensiná-los.
Para isso, foi necessário a recorrer aos conceitos pedagógicos de dois autores que estudam a importância da contextualização social na aprendizagem: Paulo Freire e Lev Vygostky Paulo Freire (1992), criticava e questionava a metodologia de ensino tradicional, que chamou bancária, já que o educador adota uma postura de detentor do saber e deposita esses conteúdos nos alunos, que ficam de forma passiva na
construção do próprio conhecimento.
Segundo ele, isso era errado, já que o conhecimento libertador, vinha da interação entre aluno e professor, em que quem é o aluno e o que está presente em seu cotidiano, realidade social, que auxiliam- o na assimilação do conteúdo.
Foi a partir dessa metodologia que um grupo de professores liderados por ele ensinaram mais de 300 adultos a lerem e escreverem em menos de 40 horas.
Nesse caso, os professores utilizavam fonemas presentes na vida desses adultos como tijolo e cimento, por exemplo, para ensinarem.
O psicólogo Lev Vygotsky (1896 -1934) também reconhece a importância de relação professor e aluno na construção do conhecimento. Para ele, a formação de um sujeito ocorre entre a relação dialética entre homem e sociedade, em que um modifica o outro.
Assim, no contexto de sala de aula é de suma importância que haja a interação social dos alunos entre eles e com o educador que, ocupa um local de mediador na construção do conhecimento.